Como
muitos brasileiros, eu sofri ao saber que uma criança de apenas 10 anos
atirou com uma arma de fogo contra sua professora e em seguida se matou.
É profundamente desalentador perceber que uma criança tão pequena
carregava em seu coração tamanho ressentimento e desesperança.
Que
mundo hostil apresentamos ao menino Davi Mota Nogueira para que ele não
conseguisse depositar nenhuma esperança no dia de amanhã? Sob o
impacto dessa tragédia, numa tentativa de aliviar a insuportável dor,
nós adultos, tendemos a nos consolar com a idéia de que tudo foi uma
fatalidade.
Em
depoimento prestado a um programa de TV, o senhor Milton Nogueira, pai
de Davi, afirmou que não se sentia culpado, argumentado que o ocorrido
foi uma tragédia e que só lhe resta lamentar. Ainda que imbuída de compaixão pelo indescritível sofrimento deste pai, eu me sinto na obrigação de contestar essa afirmação.
A
violência ocorrida na Escola Municipal Alcina Dantas (São Caetano/SP) –
como qualquer forma de violência – poderia ter sido evitada. Diferente
das catástrofes naturais, as violências são fruto de escolhas humanas,
portanto, evitáveis em sua origem. Não podemos colocar uma pá nesta
história, nos eximindo de nossa responsabilidade. Em honra à vida deste
menino que, muito cedo, desistiu de sua vida, precisamos fazer um
exercício de mea culpa, pois quando uma criança escolhe a morte
algo muito errado estava ocorrendo com ela. Em um gesto de profunda
humildade, autocrítica e reflexão, precisamos refazer os nossos caminhos
e descobrir onde estamos fracassando como humanidade.
Para
Ronald Laing, "cada vez que nasce uma criança há uma possibilidade de
adiamento. Cada criança é um novo ser, um profeta em potencial, um novo
príncipe espiritual, uma nova centelha de luz que se precipita na
escuridão. Quem somos nós para decidir que não há mais esperança?". Ciente
da verdade proferida por Laing, acredito que cada vez que humilhamos,
ferimos e matamos uma criança, estamos de fato usurpando da humanidade a
esperança.
Para
as políticas públicas de saúde as violências são evitáveis. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que as violências possuem
múltiplas causas e são todas evitáveis. Em sintonia com esse
entendimento, acredito que múltiplos fatores contribuíram para o trágico
desfecho na Escola de São Caetano. No entanto, destacarei nesse artigo
apenas dois aspectos que envolvem situações de violência na escola, por
considerá-los importantes fatores de riscos à saúde e a vida de crianças
e jovens: o fácil acesso à arma de fogo e à aceitação social das formas violentas de lidar com conflitos e diferenças.
ARMAS DE FOGO
De
acordo Ronaldo Cunha Lima, ex-governador da Paraíba, a presença da arma
de fogo altera a natureza da violência, tornando-a letal, pois o porte
de armas transforma conflitos banais em verdadeiras tragédias. Nesse
sentido, levar uma arma de fogo para casa representa colocar em risco
permanente a vida de crianças e adolescentes. Para Rodrigo Pimentel,
especialista em segurança, não existe lugar seguro para esconder arma em casa.
O
Brasil, 3% da população mundial, é responsável por 8% das mortes por
arma de fogo no mundo. 17,5 milhões é o número estimado de armas de fogo
em circulação no Brasil, sendo que apenas 10% dessas armas pertencem ao
Estado (forças armadas e polícias). O restante, ou seja, 90%, estão em
mãos civis. O Brasil é o país onde mais se mata com arma de fogo em todo
o mundo. São mais de 38.000 mortos todos os anos. Os dados do Sistema
Nacional de Mortalidade evidenciam que 38,8% das causas de morte dos
jovens brasileiros (15 a 24 anos) são decorrentes de armas de fogo.
De
acordo com a AACD – Associação de Assistência à Criança com
Deficiência, 40,8% dos pacientes com lesão medular que procuram seus
centros de reabilitação foram vítimas de armas de fogo. Esses pacientes
se tornaram tetraplégicos ou paraplégicos. Mais de 83% dos pacientes
avaliados pela AACD eram homens, sendo que 61% das lesões medulares por
armas pertenciam ao grupo de pacientes de 12 a 18 anos.
Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor das
vendas de arma de fogo no país, em 2003, alcançou a cifra de R$ 344
milhões. Esse foi o movimento financeiro no mercado interno. Apesar de
alto, os principais lucros alcançados pelos fabricantes de arma advêm
das exportações. Relatório anual sobre transferência de armas divulgado
em agosto de 2005 pelo Departamento de Pesquisa do Congresso
norte-americano revelou que os dez maiores exportadores de armas do
mundo venderam o correspondente a US$ 22 bilhões, em 2004.
As
cifras citadas acima mostram porque é crucial para o mercado de armas
construir uma mentalidade social que tenha dentre os seus fundamentos a
compreensão de que os conflitos, as diferenças interpessoais ou grupais
só podem ser resolvidos por meio da violência e a edificação de um ideal
de sucesso masculino centrado na idéia de dominação, de supremacia
sobre o outro.
TOLERÂNCIA À VIOLÊNCIA
Acredito
que um dos motores que faz a roda do ciclo vicioso da violência girar é
o consentimento dado por nossa sociedade às formas violentas de se
resolverem as diferenças, os conflitos. O uso de violências físicas na
educação e no cuidado de crianças e adolescentes tem perpetuado o ciclo
vicioso de violência dentro da vida familiar. Os pais batem nos filhos;
os filhos batem em seus irmãos e colegas de escola; depois, filhos e
colegas batem em suas namoradas, parceiras e esposas, que por fim,
também batem em seus filhos. Semeamos ventos e colhemos tempestades!
Dentre
os prejuízos causados pelo uso de violências na educação e no cuidado
de crianças e adolescentes, estão o desenvolvimento de uma frieza, de
uma indiferença por parte dos adultos em relação à dor e ao sofrimento
dos mais jovens. O principal fator que leva a aprovação do adulto
de uma determinada forma de violência física ou psicológica é tê-la
sofrido na infância. O índice de aprovação do uso de violências na
educação de crianças e adolescentes é de duas a três vezes maior entre
aqueles que as sofreram na infância.
Os
indivíduos que sofreram violências físicas rigorosas na infância tendem
a crescer acreditando que suas experiências foram normais e não
abusivas. Portanto, as primeiras experiências pessoais de violência
podem aumentar a tolerância na hora de definir um ato como violento ou
não. A tolerância em relação às violências e à crença de que o
sofrimento fortalece têm promovido uma educação familiar e escolar que
desvaloriza os sentimentos das crianças. A socialização pela violência
tem deformado as crianças e gerado adultos com uma limitada capacidade
de empatia com o outro. Nas relações interpessoais, em especial com as
crianças, esse adultos não ultrapassam a margem das superficialidades,
das aparências.
Para
o filósofo Theodor Adorno uma educação que valoriza o "ser duro" com os
mais jovens estimula o desenvolvimento de uma cultura de indiferença em
relação à dor em geral. Suportar a dor em si como
um ideal de força e poder, leva ao entendimento de que é necessário
perpetrar a dor no outro como um meio de fortalecimento dos aprendizes.
As pessoas que são severas consigo mesmo, em nome de um suposto
fortalecimento pessoal, sentem-se no direito de serem severos também com
os outros, vingando-se no próximo as dores que teve que suportar calado
em seu passado.
Sem
um congelamento afetivo, sem uma frieza, sem uma oceânica indiferença
em relação ao sofrimento e a dor do outro a tragédia do holocausto não
teria sido possível. A indiferença à dor em si e nos outros promove a
naturalização da violência e o desenvolvimento de mentalidades
autoritárias, como foi o caso do fascismo. Portanto, a identificação com
o outro, com suas dores e amarguras, é um dos elementos cruciais para
que as barbáries sejam evitadas.
Érico Veríssimo diz que “o oposto do amor não é ódio, mas a indiferença”.
Depois de 14 anos atendendo pessoas em situações de violência, tenho
que concordar com a assertiva de Veríssimo. Todas as pessoas que atendi
em sofrimento mental por vivenciarem alguma forma de violência buscaram
ajuda. Todas tentaram comunicar a sua dor a alguém que confiava. Mesmo
as crianças muito pequenas deram sinais de seu sofrimento. Mas somente
uma pequena parcela não recebeu a indiferença como resposta a seu pedido
de ajuda. Por expressamos um estado de entorpecimento, de frieza em
relação à dor do outro, em especial das pessoas que estão mais próximo
de nós, não temos protegido os que sofrem de seus próprios desatinos.
A
frase “a criança chora e pais não vê”, pichada no muro da Escola de São
Caetano, delata a nossa incapacidade de enxergar nas crianças suas
aflições e sofrimentos. Embora fosse vista por muitos, como "um
menino calmo, bem-arrumado, educado e branco”, ele estava em sofrimento.
Ele deu pistas desse sofrimento duas semanas antes da tragédia, ao
fazer a seguinte pergunta ao seu irmão mais velho: “se eu morrer você
vai ficar triste?” No dia da tragédia ele contou para um colega que
tinha uma arma e ia matar a professora Rose. Esse colega não levou o
caso adiante, pois achou que a fala de Davi era apenas uma brincadeira.
Esses dois diálogos são exemplos claros de oportunidades perdidas.
Quantas outras chances foram oferecidas por Davi para que a violência
contra a professora fosse evitada e sua vida salva? Bem, agora é tarde
demais.
A
dor, o medo e a angustia do menino Davi não foram ouvidas, quanto menos
legitimadas. Por não ouvir seus recatados pedidos de ajuda, não pudemos
protegê-lo de seu desatino. As pessoas que atendi ao longo de
minha prática profissional me ensinaram muito sobre os seus sentimentos
em relação à violência sofrida. Elas sentem raiva e ódio. Mas também
sentem, em demasia, a magoa – uma mágoa profunda pela pessoa que elas
depositaram confiança e amor, mas que não agiram no sentido de
protegê-las da violência ou interditá-las. Ou seja, se existe alguém que
fere o outro, existem sempre muitos que não impediram que essa ferida
fosse aberta. Se queremos ajudar as vítimas, só tem um caminho: não ser
também cúmplices das violências, não negligenciar o sofrimento do outro.
Por
que pais e educadores não conseguem perceber sofrimento e dificuldades
nas crianças “silenciosas” demais? Será que esse silêncio, essa calma
aparente definida por professores e pais de colegas de Davi eram na
verdade um estado de profundo desligamento da realidade que o fazia
sofrer?
É
crucial que pais e educadores saibam que um dos importantes sinais de
alerta para uma dificuldade no plano relacional e afetivo é o
isolamento, o afastamento silencioso e progressivo do convívio com o
outro. As vulnerabilidades e os sinais de alerta para o
diagnóstico de situações de violências contra crianças e adolescentes
precisam ser partilhado com pais e professores.
Todavia,
mais importante que receber informações que ajudem na identificação de
situações de risco, pais e professores precisam ter como prioridade
educativa a construção de uma proximidade afetiva com seus filhos e
alunos. Eles necessitam de um espaço para o diálogo franco, onde possam
partilhar com os adultos seus dilemas, vergonhas, angustias e dores.
Pois como afirma Charles Chaplin no discurso final do filme O Grande
Ditador: “mais do que de máquinas, precisamos de
humanidade, mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura.
Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido."
Cida Alves
Fonte: Artigo publicado no caderno Magazine do jornal “O Popular”, no dia 2 de outubro de 2011 – Goiânia (GO).