quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Carta do GT 20 da Anped e Organizações da Psicologia sobre o Ensino híbrido ao CNE

À Exma. Sra. 
Maria Helena Guimarães de Castro
Presidente do Conselho Nacional de Educação 

Em atendimento à Consulta Pública aberta pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), no período de 16/11/2021 a 26/11/202, referente às Diretrizes Gerais sobre a Aprendizagem Híbrida, ponderando que a missão do CNE é “[...] a busca democrática de alternativas e mecanismos institucionais que possibilitem, no âmbito de sua esfera de competência, assegurar a participação da sociedade no desenvolvimento, aprimoramento e consolidação da educação nacional de qualidade”(1) , e após estudos do contido nos documentos disponibilizados, Relatório e Projeto de Resolução, apresentamos nossas considerações. A situação de exceção provocada pela Pandemia Mundial da Covid-19 afetou drasticamente países, povos e grupos, de diferentes modos e em diferentes escalas. Ante a sua gravidade e a quantidade de vítimas, adoecidas e/ou mortas, como relata a Organização Mundial de Saúde, além de diferentes agências nacionais e internacionais, os impactos da pandemia têm sido amplamente estudados por diferentes áreas da ciência e setores/organismos da sociedade.

O setor da educação formal foi altamente impactado no Brasil, em seus níveis, etapas e modalidades, por isto, tal como se deu no âmbito da Saúde, pesquisadoras/es e profissionais da educação realizam pesquisas e intervenções cujos resultados vêm sendo expostos em publicações indexadas e em eventos acadêmico-científicos, como, também, fora desse âmbito, atendendo às urgências que se apresentam às famílias, aos estudantes e à sociedade como um todo. Os impactos da Pandemia na promoção das desigualdades de toda ordem têm sido considerados nesses estudos e intervenções, que se deparam com o anúncio da produção do fracasso escolar junto às classes mais pobres, matéria muito bem analisada e enfrentada desde, sobretudo, a década de 1980. Por isso, está no horizonte desses estudos e proposições a defesa de que a escola possa contar com aquilo que de mais complexo e avançado a humanidade tem produzido, de modo a se garantir o bom ensino, aquele que promove a aprendizagem e movimenta o desenvolvimento tanto dos que ensinam, como dos que aprendem. Assim, defende-se que as elaborações/produções simbólicas e materiais já conquistadas possam se fazer presentes e garantir tecnologia de qualidade nos espaços e ambientes de educação formal, em especial os referentes às redes públicas de ensino - como seria o caso, por exemplo, de tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC).

Com a Pandemia, noticiou-se amplamente quanto as pessoas almejaram/almejam os encontros presenciais das famílias, das(os) trabalhadoras(es), das(os) professoras(es) e estudantes, entre outros, como um dos fatores fundamentais para a saúde física, mental e para se levar adiante a formação humana. Além dos encontros presenciais, colocou-se em evidência a importância das(os) profissionais da educação e mostrou-se a necessidade de se valorizá-las(os). Em parte, isso se notou com um grande percentual de famílias que se depararam com atividades para as quais não estavam adequadamente preparadas, referentes ao acompanhamento escolar de suas(seus) filhas(os). Nesse contexto inesperado, e diante de diferentes modos de gestão da Pandemia, o ensino híbrido se apresentou como uma alternativa remediativa. À luz de um conjunto de documentos legais e teórico-metodológicos que orientam e sustentam a educação brasileira, que desde os anos 1990 vem se empenhando em universalizar a Educação Básica, em ampliar as ofertas do Ensino Superior e enfrentar as assimetrias que por ela se evidenciam, as alternativas encontradas devem ser mais bem investigadas e analisados os resultados efetivos que têm produzidos.

Uma força tarefa dos agentes sociais implicados se faz urgente, e isso demanda ampla divulgação, gerando sensibilização e envolvimento dos mesmos, com tempo adequado para o propósito. Além disso, é importante evidenciar que uma consulta pública voltada para alterações na educação de tal dimensão jamais poderia ter sido colocada de maneira aligeirada com tão poucos dias, impedindo a realização de um amplo debate com a sociedade civil organizada. Ante esses apontamentos, entre outros que têm sido alvo de debates por áreas da ciência e campos profissionais como Psicologia, Pedagogia, Serviço Social, Sociologia, entre outras. Diante do exposto, os grupos/representantes signatários desta manifestam-se contrários à adoção do referido ensino híbrido, levando em conta os argumentos expostos a seguir.

1 - A aprendizagem híbrida não é conceito que se sustente; não há teorizações suficientes que fundamentem concretamente a possibilidade de efetiva aprendizagem de todos/as estudantes nessa modalidade.

2 - A modalidade “híbrida” não é regulamentada no âmbito da educação.

3 - Não há resultados que subsidiem a efetividade das estratégias emergenciais utilizadas no contexto da pandemia. O que precisa haver é uma pactuação para que as escolas e/ou as redes possam recuperar as perdas ocorridas, com reorganização estrutural, o que implica em ofertas de serviços especiais, contratação de profissionais, atividades adequadas à idade-série, reorganização curricular para dar continuidade ou recuperar o que ficou pendente com a pandemia.

4 - Parte significativa de escolas/instituições não têm sequer acesso à internet, ou ele é insuficiente - embora há que se considerar que o uso de tecnologias não é uma metodologia em si. As tecnologias devem ser aprimoradas e empregadas, mas na escola devem estar a serviço do ensino que promove aprendizagem, do programa curricular, da relação presencial, da mediação.

5 - O uso da tecnologia em substituição ao ensino presencial pode ampliar, ainda mais, a diferença de classes. Sabemos que o povo brasileiro está lutando para suprir as necessidades básicas de sobrevivência e nem sempre tem equipamentos e internet que possibilitem participar das atividades online, como se prevê no ensino híbrido. Este tipo de ensino não resolve o problema da desigualdade; antes o acentua.

6 - A luta pela escola pública de qualidade, para todas as pessoas, inclusiva, presencial e com segurança, requer que a escola esteja de fato equipada com as mais altas tecnologias. Não existe dualismo nesse sentido, entre a boa escola presencial e o emprego das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs), pois, se há recursos para implantação da proposta de ensino híbrido, eles deveriam ser usados na escola atual. Do mesmo modo, não se fundamenta a percepção de que o modelo presencial de aulas estaria vinculado a uma perspectiva defasada, enquanto a mera utilização de recursos tecnológicos significaria, por si só, um avanço no processo educacional.

7 - A educação presencial, sob os parâmetros apontados, favorece que as famílias possam ter suas rotinas de vida cotidiana, e de trabalho profissional mais bem organizadas.

8 - Não nos contrapomos à cultura digital, mas destacamos a necessidade de que todas as pessoas possam compreender o contexto atual e o papel que a tecnologia ocupa na sociedade, utilizando-a em favor de seu próprio desenvolvimento e da transformação da sociedade.

9 - O horário escolar não deve ser flexibilizado. É o horário de estudo, de promoção de desenvolvimento. Diante das contingências, evidencia-se a necessidade de ampliação da carga horária, considerando-se o papel fundante da Escola para o desenvolvimento integral, pleno dos sujeitos que por ela são atendidos.

10 - Flexibilizar o tempo de permanência no espaço escolar pode ampliar a precarização do ensino. A escola necessita garantir o acesso ao acervo de conhecimentos produzidos historicamente, precisa contribuir para o processo de humanização dos estudantes, por meio da apropriação da cultura.

11 - O documento analisado ressalta a possibilidade de autonomia do aluno, e deste dirigir o ensino. Essa defesa põe em discussão a importância e a valorização do trabalho da(o) professora(or) no processo ensino-aprendizagem. A(O) professora(or) é fundamental para socializar os conhecimentos curriculares, ele tem como norte a formação de base. Não há condições para que estudantes desenvolvam, sozinhas(os), o processo de apropriação dos conhecimentos. Entendemos que professora(or), aluna(o) e conteúdo curricular têm posições ativas no processo ensino-aprendizagem. Esse processo é ativo e não depende de um ensino híbrido para ser garantido.

12 - Experiências significativas se dão na escola e a partir dela, na interação com os pares. O ensino híbrido distancia professor-aluno e alunos-alunos. O contato presencial fortalece o vínculo entre as(os) partícipes do processo educativo. Existe uma unidade entre afeto e cognição, entre aquela(e) que ensina e aquela(e) que, dialeticamente, se apropria dos conhecimentos.

13 - A exposição às telas tem causado cansaço, e sem os limites de horários leva à sobrecarga de trabalho, comprometendo a saúde mental de alunos e professores.

14 - Uma proposta dessa amplitude precisa de tempo para ser analisada, refletida, debatida entre os vários setores que compõem a Educação Brasileira. Há equívocos conceituais importantes na proposta, perspectivas teóricas controversas apresentadas sem o rigor necessário, que demandam espaços de debate mais aprofundados para que possam ser elucidados. Diante destas e de outras razões, apontamos para os problemas que a aprovação da matéria em tela gera ou agudizam, bem como o estranhamento do prazo exíguo para que a sociedade possa realizar o debate necessário.

Em 26 de novembro de 2021,

Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional do Paraná - Abrapee/PR

Grupo de Trabalho Psicologia da Educação da Associação Brasileira de Pesquisa e PósGraduação em Educação - Anped GT 20 

Conselho Regional de Psicologia - CRP 8ª Região - Paraná

Associação Brasileira de Psicologia Social - Abrapso/Núcleo de Curitiba e Regional Paraná

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá - PPI/UEM.


(1) Disponível em: ‘Apresentação - Ministério da Educação (mec.gov.br).